sexta-feira, junho 06, 2008

Trem da Morte até Santa Cruz

A primeira hora de viagem no Trem da Morte foi de extrema felicidade. Era a realização de um sonho, juntamente com a excitação de descobrir algo novo. Sonho porque quando eu vim à fronteira pela primeira vez, em 2001, tudo o que queria era continuar a viagem até La Paz. A novidade era porque andava de trem e entrava de fato em um país estrangeiro pela primeira vez.

Depois da correria, vi o quanto custou não apostar na compra da passagem diretamente no guichê e sim de um 'agente' de turismo. Isto porque o 'agente' na verdade era um cambista (sem aspas). A passagem na ferroviária custava bs. 115 (cento e quinze bolivianos), uns R$ 30 na cotação da época (R$ 1,00 = +- bs. 3,55), enquanto que Alberto nos cobrou R$ 50. Quase o dobro. Mas, confessemos, foi honesto em tudo que prometeu.

Estávamos na classe Super Pullman, a melhor do tipo de trem disponível naquele dia. Os bancos eram bons, aparentavam uma reforma há pouco tempo. Já as janelas eram velhas, difíceis de abrir e fechar. Tinha um bom ar condicionado e televisões que passaram filmes à noite. Pela tarde ligaram uma musiquinha instrumental tipicamente boliviana. Muito bom. Apesar de ser um trem, não havia cabines e, consequentemente, não era muito diferente que um ônibus brasileiro, exceto pela velocidade vagarosa.

O melhor de tudo era o nível de ocupação do nosso vagão. Quando comparei o preço do bilhete e vi que tínhamos pagado mais, a priori fiquei um pouco desapontado. Contudo, depois de perceber que não iria quase ninguém conosco, meu ânimo melhorou - pagamos mais, mas viemos sosegados, cada um em dois bancos.

Então? Dormir? Eu não, meu caro. Se já gostava de ficar acordado a noite em viagens de ônibus por estradas que eu já havia passado mais de 50 vezes, imagina no famoso Trem da Morte, em um lugar que nunca estive? Ou melhor, na primeira atração de uma sonhada viagem?

Logo que o trem deixou a estação de Puerto Quijarro, dentro de mim se misturavam a emoção descomunal pelo momento, a adrenalina forte por tudo que haviamos passado minutos atrás e o medo de ter deixado alguma coisa importante para trás. Graças a DEUS, este medo não foi conformado. Peguei o meu celular para ver às horas e notei que ainda havia sinal. Para me tranquilizar de tudo, tive a idéia - por que não gastar um pouco dos créditos e ligar para casa? Será que este sinal completa uma ligação? A lista de emoções ficou completa quando meu pai atendeu do outro lado.

Não acreditava. O trem lentamente ia se movendo entre os trilhos. Não muito longe, via Corumbá (MS) e o Rio Paraguai, que se afastavam lentamente. Neste cenário de entardecer, conversa com o pessoal lá de casa na última oportunidade que tinha de ligar de meu próprio telefone.

Comecei a seguir o caminho por meu mapa de estradas da Bolívia, comprado de uma loja virtual inglesa, já que não encontrei no Brasil. Até o anoitecer havíamos passado por uns quatro vilarejos, que naquela região podíamos considerá-los cidades. Eram pequenos conjuntos de casas bem simples, com ruas de terra, geralmente com mato em volta. Percebi que algumas vilas não possuiam iluminação pública e, por isto, com exceção de algumas lâmpadas das casas, ficavam escuras à noite.

A fome apertou quando a noite caiu. A comida faltou (rs). Sem dinheiro boliviano (apenas com dólares e reais), não tivemos muitas alternativas. Dois de nós foram até o vagão restaurante e conversaram com o atendente. Voltaram dizendo que ele toparia trocar reais, mais por uma cotação BEM inferior ao câmbio normal. Negamos. Como minha comida reservada para a viagem faria a festa da imigração boliviana no dia seguinte, percebi que passaria a noite comendo algumas bolacha Negresco, que havia comprado ainda na rodoviária de Goiânia.

Aquelas bolachas me salvaram a vida . Caíram muito bem no meu estômago, depois de um dia intenso. O meu problema maior era água. Comecei a filar um pouco dos outros, mas notei que todos estavam com a mesma necessidade. O engraçado é que no meio da nossa mobilização alimentícia, o rapaz que havia proposto o mal negócio do câmbio desvalorizado passou entre as nossas poltronas e gozou: ya has cenado? (já jantaram?). Rodrigo, perspicaz, apenas apontou um tubo de batatas fritas importadas, compradas na Zona Franca, que estava aberto e preso ao banco da frente.

Na poltrona ao lado da minha (da que estava marcado na minha passagem, não na que eu fui de fato, já que, como disse, o vagão estava vazio), viajava uma brasileira. A Isabela (nome fictício) era paranaense e estava indo se encontrar com um grupo de israelenses que viajavam pela Bolívia. Era financiada pelos pais. Me deu a impressão que seus pais pagavam a viagem para se verem livres dela. Mesmo assim, era muito gente boa. Como a noite caiu e atrapalhou o meu passatempo predileto, que era ficar acompanhando os vilarejos, me juntei a conversa que ela já estava tendo com outros de nós, e ficamos horas ali. Tinha muita experiência com os judeus, nos explicou alguns detalhes da cultura hebraica e contou alguns casos.

Não posso deixar de relatar dois detalhes da minha noite no trem. Já no meio da noite (umas duas da manhã), paramos em uma cidade que, de vista, parecia maior do que a maioria. Lá subiram umas mulheres oferecendo pastéis. A recomendação era não comprar comida de fora do trem, já que poderia não fazer muito bem. Porém, os pastéis cheiravam TÃO bem, que a única coisa que me barrou foi à falta de bolivianos. Naquela hora não aguentei e decidi me arriscar no espanhol. Perguntei qual era aquela cidade. "Ro-o-rê, ro-o-rê", respondeu. Agradeci, mas fiquei na mesma. Peguei meu mapa e descobri que aquilo que ela havia regurgitado era certamente 'Roboré', dito muito rápido.

Não sabia direito aonde que era, mas não gostaria de dormir sem ver o Chochis. Então fiquei mais um pouco acordado, olhando pela janela, procurando-o. Em menos de meia hora comecei a ver sinais. O trem passou a fazer mais curvas e começou a cortar uns pequenos morros ao meio. Não tardou muito para eu vê-lo. Bom, para quem não conhece o Chochis é uma montanha no meio da planície do Pantanal boliviano. Ou melhor, não é uma montanha comum, é um retângulo em pé no meio do nada, parecendo que seus lado foram cortados com uma faca. Uma caixa de fósforo em pé. O detalhe é que ele é MUITO alto, ultrapassando os 800 metros desde o chão. Ver o Chochis de dentro do trem, a noite, no meio da província de Santa Cruz foi de arrepiar.

Depois disto não tive forças para mais nada. Dormi. Perdi quando o trem passou pela cidade de San José de los Chiquitos, a maior da região, fora Santa Cruz. Acordei e já era dia, quando senti algo incomum. Minha garganta estava muito inflamada. Que tragédia. Tentei não desanimar, e comecei a chupar umas pastilhas. De cochilo em cochilo forçado, lembro-me que vi os primeiros sinais de Santa Cruz logo depois das oito da manhã. Me impressionou o fato da cidade ter o mesmo número de habitantes que Goiânia, mas, aparentemente, sem prédios. Mais tarde eu os achei, mas não são tão grandes e tão numerosos como na nossa capital.

Chegamos a estação. Hora do quê? De mais confusão. A falta de bolivianos ainda nos causava dor-de-cabeça. Não tínhamos um bolivianito sequer. Como ninguém estava a vontade em fazer câmbio na rodoviária (ou ferroviária, já que era uma estação bimodal), o jeito foi recorrermos a quem estava mais perto de nós. Na ocasião era Isabela. A menina também não tinha muitos bolivianos, mas o seu israelense estava lá para buscá-la.

Conversa vai, conversa vem, consegui que ela nos vendesse 20 bolivianos, o suficiente para tomarmos um taxi até o centro, onde o israelense nos indicou uma pousada. Não iríamos passar a noite, mas os demais queriam um lugar para tomar banho. Eu não ligava tanto para a sujeira, mas concordei, já que lamentaria andar o dia inteiro com aquela mochila pesada nas costas.

Saindo da estação, me lembrei de um conselho. "Na Bolívia tudo é negociável. Antes de pegar um táxi, pechinche, que você certamente terá um preço melhor", era o que mais ou menos estava escrito no meu guia de mochileiros. Então tá, enchi o peito e fui conversar com o motorista. Ele veio todo animado, começou a colocar nossas mochilas no bagageiro. A Lucimeire até já estava sentada no banco, quando fui negociar o preço. Fiz uma oferta (não me lembro bem, mas acho que era bs. 10). O rapaz nem olhou para a minha cara, na mesma hora começou a tirar nossas mochilas de seu carro e passou a indicar o ponto de ônibus. Falava que lá nós poderíamos pegar vans que nos levaria ao centro a baixo custo. Tudo bem, os cruceños são famosos mesmo por suas aptidões capitalistas em um país com simpatia socialista.

Logo depois, veio outro táxi e este conseguimos convencê-lo a nos levar por bs. 20. Foi então que comecei a perceber o tanto que estava cansado. A dor de garganta me tirava o ânimo, e toda aquela empolgação do dia anterior começou a virar agonia. O trânsito da cidade, assim como o de toda a Bolívia, era uma droga, ninguém respeita ninguém.

Se a derrota para o motorista de táxi não fosse o bastante, logo que chegamos na pousada indicada, levamos outro direto na cara. Novamente fui convencer o rapaz do estabelecimento que não era justo cobrar uma diária inteira da gente, já que não iríamos dormir lá. Não consegui. Também não estava com paciência, tão pouco com criatividade para inventar desculpas. Topamos pagar os bs. 80 para passamos a tarde em um quarto com duas camas. Era uma pousada BEM modesta. Se fosse para ficar, certamente buscaríamos algo melhor. Para tomar banho e descansar bastava.

Com banho tomado, saímos para, finalmente, 'cambiar las nuestras monedas'. Logo depois, outra necessidade básica - comer. As duas refeições que tivemos em Santa Cruz fizemos em chiques cafés da cidade, que servem as classes média e alta. Que bom nosso dinheiro valer tanto por aqui. No almoço, conversamos sobre a grande novidade, que era resolver a vida falando en español. Já em Santa Cruz, notamos a diferença na comida. Nada de arroz e feijão no cardápio. Nos contentamos com sanduíches, omeletes e outros pratos. No final, como se pede a conta, seu garçom? Vendo a nossa dúvida, perguntou: "La cuenta?". "Sí, gracias!".

A tarde, nos dividimos em dois grupos. Como eu tinha que ir ao banco (isto mesmo, até na Bolívia) para depositar a grana da reserva do passeio do Salar de Uyuni, e como eu vi que seria perca de tempo convencer as meninas a irem comigo, pedi ao Rodrigo para se juntar a esta missão inglória. Principalmente porque iríamos perder preciosos minutos, enquanto havia uma cidade inteira a se conhecer. No banco foi tranquilo. Esperamos muito, e o depósito foi feito imediatamente. O que me chamou a atenção era um aviso em uma das pilastras do prédio: "Zona segura em caso de terremoto". Algo difícil de ver no Brasil.

Perdemos mais um tempo em uma Lan House, já que precisávamos scanear o comprovante e mandá-lo via e-mail. Depois, separamos alguns minutos para tirar fotos, principalmente da maravilhosa catedral. Tudo feito, era a hora de nos preparar para voltar à estação. Naquela noite, viajaríamos até Cochabamba, famosa cidade universitária. Decidimos ir de uma vez a estação, onde arrumaríamos uma companhia de ônibus descente e ficaríamos por lá até o embarque.

Ao entardecer, pegamos novamente um táxi de volta a estação. Desta vez, conseguimos negociar um preço menor (viva! rs). No decorrer da jornada perceberíamos que a regra estava certa mesmo - é fundamental pechinchar - e o que ocorreu na estação havia sido pura falta de sorte. Eu, que ia sempre na frente, ao lado do taxista, por causa do meu tamanho, passei a puxar papo com os motoristas. Este era um cara muito simpático. Natural de Cochabamba, nos alertou para os efeitos do mal da altitude.

Só a título de informação, apesar do nome, Santa Cruz de la Sierra fica na planície do Pantanal (mesmo que já não seja mais Pantanal, de fato), a pouco mais de 300 metros acima do nível do mar. Para chegar a Cochabamba, é necessário subir a primeira parte da Cordilheira dos Andes. A cidade fica a 2.400 metros. Podemos compará-la com Campos do Jordão (SP), a cidade mais alta do Brasil, e que fica bem mais baixo, a cerca de 1.600 metros do nível do mar.

No meio da conversa, o taxista nos disse que gostava muito de música brasileira. "É mesmo, mas qual tipo?", perguntamos. Ele pegou uma fita e enfiou no rádio. Aumentou o som, e para a nossa surpresa começou a tocar uma música do goiano Amado Batista. Sem explicação.

Já na estação, começamos a pesquisar empresas de ônibus. A informação que eu tinha é que, nesta hora, muitos bolivianos viriam atrás de nós insistentemente oferecer os serviços de sua companhia. Não foi o que ocorreu. Muitos gritavam os destinos pelos corredores da estação, mas ficavam na deles. Assim, pudemos escolher com tranquilidade. O que não adiantou muito, já que não conhecíamos nenhuma empresa. Todas pareciam do mesmo nível. Fechamos com uma que parecia boa, pelo menos segundo às fotos.

A estação de Santa Cruz é uma verdadeira lástima. Muito movimentada, não há nada para fazer até o embarque. Até aí tudo bem. Mas, infelizmente também é bem insegura. Enquanto estávamos escolhendo a empresa, duas das nossas colegas foram abordadas por homens que se diziam policiais. Lembrando que na Bolívia é comum falsos policiais pararem turistas, pedirem o passaporte, levá-los até uma sala, onde exigiam uma boa quantia em dinheiro em troca da devolução do passaporte. Por sorte, uma delas disse que estavam em mais três, e os pilantras logo desistiram.

Subimos e ficamos tranquilamente em uma lanchonete até se aproximar a hora do embarque. Estava ansioso. Primeiro porque havia ouvido que os ônibus na Bolívia atrasam muito, são de péssima qualidade, não param em um lugar certo na rodoviária e vendem mais de uma passagem para uma mesma poltrona. Como era a nossa primeira viagem de ônibus lá, queria entrar logo no ônibus e checar item por item.

Descemos e entramos na área de embarque para encararmos o horror. Havia uma calçada bem estreita para o grande número de pessoas que circulavam naquele local. Vários bolivianos estavam esparramados pelo chão, comendo comida de rua e conversando uns com outros. Ali, começou a dar insegurança. Então cada um de nós mirou para um lado deixando que nossas mochilas ficassem todas viradas umas para outras, formando uma cruz. Estratégia para não sermos surpreendidos.

Demoramos um pouco ali. Não porque o ônibus estava atrasado, mas porque realmente havíamos chegado mais cedo. Estava preocupado em perder o ônibus. No bilhete não havia indicação de plataforma, mas o atendente que nos vendeu indicou aquela onde paravam os ônibus da companhia. Detalhe: Para economia de papel, o nosso bilhete era apenas um, indicando que havíamos comprado cinco poltronas.

Também pensava se o ônibus seria mesmo um bus-cama, de dois andares, que o rapaz da empresa havia garantido para nós. Só via ônibus velhos em toda a grande extensão da estação. No horário certo, um grande ônibus apontou na plataforma indicada. Esperou um pouco, até que um outro da mesma empresa deixasse o lugar, e assumiu o posto. Era o nosso. E de dois andares. A primeira vez que viajaria em um destes. Eram os últimos lugares do segundo andar. Foi só agradecer a DEUS por dar tudo certo. Cochambamba, aí vamos nós.

Mapa do Caminho - Dia 4

Data: 06/06/2007
Saída: Santa Cruz de la Sierra, Bolívia
Chegada: Cochabamba, Bolívia
Distância percorrida no dia: 552 km
Empresa de ônibus: Renacer
Duração da viagem: +- 11h
Tarifa: Bs. 60 (+- R$ 17,15 na época)

Um comentário:

Rodrigo Alves disse...

Estou adorando e revivendo todos os nossos passos. É engraçado que são pouquíssimas as impressões que tivemos de diferente. Se eu fosse narrar, contaria quase as mesmas coisas. Estou me divertindo muito, já que estou novamente de férias e adorando reviver aqueles dias, a mais inesquícel de minhas viagens até hoje. Neste ano decidi ficar parado sem fazer nada, férias de barriga para cima, passar mais tempo com mamãe e papai, ir ao médico, resolver coisas que o cotidiano impedem (pintou uma viagem de três dias para a Chapada dos Veadeiros, mas é esquema fantour, bem diferente, rs). E justamente também porque nas nossas férias passadas vivemos aventuras suficientes para dois anos... hehehe. Ano que vem quero viajar com você de novo, Eduardo. Nem que seja pela Itália...

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