sábado, junho 07, 2008

Fadigado

Não demorou muito para descobrir que viajar de ônibus pela Bolívia é tão seguro quanto em qualquer país sulamericano, inclusive o Brasil. No dia da viagem a Cochabamba, porém, ainda não estava certo disto. Foi assim que relutamos em despachar nossas mochilas no bagageiro do ônibus, e as levamos para dentro, junto conosco.

Descobri também que viajar em um ônibus de dois andares tem apenas a diferença de precisar subir as escadas, no caso da sua poltrona ficar no segundo andar. Era este o caso, então subimos em fila indiana, cada um com a sua respectiva mochila. Chegando na nossa poltrona, percebemos que seria inútil tentar espremê-las no compartimento de bagagem de mão. Como levaríamos mochilas tão volumosas dentro daquele ônibus?

Já que nossos lugares eram quase os últimos do ônibus, e no segundo andar não havia banheiro, atrás da última poltrona havia um espaço livre, suficiente para lotarmos com a nossa bagagem. Não pensamos duas vezes, descarregamos a carga e assumimos os nossos postos. O problema é que o primeiro banco imediatamente depois deste espaço não era nosso, e sim de uma velhinha boliviana. E é claro que esta senhora estava com vontade de deitar o seu encosto para dormir. Não conseguiu por causa das nossas mochilas.

Eu não entendi uma palavra do que ela dizia, já que falava para dentro e bem baixo. Hora nenhuma ela se queixou com a gente, mas ficava apertando o botão do banco e pressionando o encosto para deitar. Obviamente não iríamos ignorá-la. Levantei e tirei as mochilas detrás para que ela pudesse se acomodar. O problema voltou a ser onde colocar as benditas. Demorou uns dez minutos para conseguir chegar na única configuração de disposição da bagagem que poderia acomodar tudo sem incomodar ninguém.

O ônibus começou a se mover, e mais uma vez me veio à sensação de alegria. Apesar da minha garganta ainda não ter sarado - pensei bem, resolvi não dar bobeira e passei a tomar logo uns antibióticos que havia levado -, saber que à algumas horas eu estaria subindo os Andes era mais do que suficiente para me animar. Além disto, estávamos deixando aquela confusa estação para trás e havia dado tudo certo com a companhia de ônibus escolhida.

Nas disposições de lugar, havia ficado com uma poltrona de corredor. Nada mais do que justo, já que ocupei posições próximas à janela em todos os trechos, desde Goiânia. Contudo, o subir da cordilheira era um dos pontos altos da viagem, na minha opinião. Esperava muito por isto. Então, segui viagem bem atento.

Logo percebi que não era o fato de estar no corredor que iria prejudicar a minha visão, mas sim o filme que eles haviam ligado para os passageiros assistirem. Todos os ônibus que pegamos à noite na Bolívia faziam questão de passar filmes até onze horas, ou meia-noite. A verdade é que geralmente eram filmes sofríveis. Em todos os casos, a luminosidade da televisão refletia na janela e impedia que as pessoas de dentro visualizassem o que se passava fora. Um estorvo para pessoas que, como eu, estava muito mais interessadas em ver a Bolívia do que qualquer filme que eles pudessem passar naquele momento.

Como eu sou insistente, fui tentando acompanhar o nosso trajeto. Logo percebi que havíamos tomado a estrada para o norte, e permaneceríamos nesta direção até Monteiro, quando mudaríamos para o oeste até Vila Tunari, onde 'atacaríamos' a cordilheira de uma vez, já próximo a Cochabamba. Vale lembrar que há uma outra estrada (acredito que mais velha) que é mais direta; ao invés de ir para o norte, desde Santa Cruz ela segue para o oeste, chega na cordilheira mais cedo e passa mais tempo subindo e descendo montanhas.

Como notei que demoraria um pouco até Vila Tunari, tratei de relaxar. Apesar do grande cansaço que já me abatia, a excitação me impediu que dormisse. Sabia que teria um outro longo dia logo mais, e isto era o que mais me preocupava. Contudo, nada me convencia a desistir de ver o início da cordilheira, e cada vez mais lamentava por não ter planejado fazer este trecho de dia.

Algumas horas se passaram, e os Andes se aproximavam. Tentava perceber alguma modificação no relevo, mas a noite atrapalhava. À aquela altura o filme já havia terminado, e tudo estava escuro. Assim, não percebi onde estava quando chegamos a Vila Tunari. Mais tarde, quando já estava de volta a Goiânia, pesquisei sobre esta cidade e vi que havíamos passado em um lugar maravilhoso. Tunari na verdade é uma vila que fica no meio de uma mata com a Cordilheira dos Andes ao fundo. Sem palavras.

Não demorou muito quando notei que a estrada já não estava tão plana. Subimos um pouco, e logo depois descemos por um terreno íngreme até cruzarmos um rio. Foi então que percebí que aproximávamos de algo grande. Indiscritível mesmo foi dar de cara com um paredão, que só podia ser percebido já muito próximo de nós, e que só era visualizado pelo contraste, já que a sua tonalidade escura, à noite, era mais escura que o céu. Ao longo desde 'paredão' havia pequenas luzes amarelas em movimento, seguindo uma às outras como se fosse uma trilha. Esta 'trilha' desenhava uma reta diagonal no 'paredão' de pontinhos que não paravam. Era o caminho por onde iríamos passar no primeiro contato com os Andes.

Quando começamos a subir de fato, a visualização ficou tão mais interessante, quanto difícil. A estrada se transformou em um constante 'sobe-e-vira'. A cada virada, podíamos perceber que a trilha de pontinhos amarelos se dividia em duas: uma podia ser vista olhando para baixo, acompanhando a posição que acabávamos de passar, a outra seguia em frente, insistindo em continuar subindo na diagonal.

Quanto mais subíamos, mais tínhamos que subir. O que impressionava, realmente, era o tamanho daquilo e também o fato de que, mesmo depois de dezenas de minutos desde o início da subida, ainda podíamos ver o ponto inicial, quando a estrada vira uma plataforma cordilheira acima. Às vezes este ponto inicial sumia, já que dependia das curvas que o ônibus fazia, mas quando a visão dele voltava estava ainda mais baixo do que no último contato. Até que, de repente, a movimentação dos objetos na parte de baixo da montanha começou a ficar mais devagar, como uma verdadeira câmera lenta. Foi aí que notei que devíamos estar realmente muito alto.

A janela do ônibus era para mim verdadeiramente como um forno de frango para um cachorro faminto. O detalhe é que, como estava no corredor, ficava me debruçando sobre o Rodrigo, que dormia. Aliás, logo no início, ele acordou e acompanhou comigo uma boa parte da nossa escalada. Como esta era uma parte muito puxada da jornada, porém, ele voltou a dormir antes de mim. Mesmo com a taxa de emoção acima da média, o tempo foi passando e o sono chegou com tudo. Satisfeito, não me sobrou outra coisa a não ser dormir.

Abri os olhos e já era de dia. As casas de Cochabamba já passam ao meu lado muito antes de conseguir perceber onde estava. Meu cérebro estava embriagado pela fadiga, e meu corpo pedia uma boa noite de sono. Vamos recapitular: desde que havia deixado Goiânia, só havia dormido bem no albergue de Corumbá. Todas as outras noites passamos viajando. Até aquele momento, haviam sido 50 horas de estrada em três dias e meio, ou seja, em 84 horas. Eu precisa, urgentemente, de descanso.

Foi aí que percebi que não haveria outra saída, seriamos escravos do nosso próprio roteiro. Apesar da mobilidade de datas e destinos ter sido um dos meus objetivos, quando planejei aquela viagem, o roteiro havia ficado engessado. Precisávamos continuar firme no caminho, ou não chegaríamos a Uyuni a tempo do nosso passeio. O problema é que não aguentava mais pensar em ônibus, trem ou qualquer meio de transporte, e já tínhamos uma outra viagem marcada para à noite.

É difícil passar exatamente o que senti naquele dia, principalmente para uma pessoa que não estava lá com a gente. Vou tentar explicar. Quando a gente escreve contando uma viagem, só relatamos a parte interessante. Por razões óbvias, omitimos a parte burocrática, que só vivemos quando estamos no meio de uma jornada. Este fato atrapalha demais o planejamento de uma viagem, principalmente os novatos, já que, ao ler a narração de uma extensa jornada, a pessoa não percebe que em um roteiro apertado se cria uma rotina tão insuportável quanto qualquer semana de trabalho duro.

Esta rotina começa na hora de viajar por um trecho. Você pega as suas coisas, coloca na mala, arruma tudo certinho e checa um milhão de vezes para ver se não ficou nada no albergue. Já no saguão, você fecha a conta, pega a calculadora, faz as inúmeras conversões de moedas e paga. Sai, chama um táxi, pechincha o preço até a rodoviária. Lá, fica em dúvida na hora de escolher a melhor opção de companhia de ônibus, chega no atendente, pechincha o preço e paga. Quando se está em grupo, lembre-se que o rapaz não vai querer cobrar individualmente as passagens, o que gera uma dor de cabeça para acertar tudo depois entre todos. Vai, compra o bilhete de taxa de embarque (que na Bolívia e no Peru são vendidos separadamente). Com a mochila nas costas, você espera o seu ônibus, apresenta passagem e passaporte para o embarque (que muitas vezes está bem no fundo da sua pochete lotada). Chegando no local, você desce do ônibus, procura um táxi, pega o roteiro que muitas vezes está bem no fundo de uma mochila (impossível se organizar constantemente em uma viagem como esta), pechincha o táxi e explica onde você vai. Chegando no albergue, você pechincha o albergue, sobe até os quartos (fator de dificuldade: mal da altitude) abre a sua mochila, praticamente a desfaz para achar roupas limpas e todos os apetrechos para o banho. Toma banho, espera todo mundo, sai, almoça, anda pela cidade. A tarde, chega no albergue e é hora de arrumar tudo de novo e se mandar.

Multiplique isto por quatro, é mais ou menos o que a gente estava passando. Esta rotina estressa. Chega uma hora que você não aguenta mais abrir e fechar a mochila, não quer mais saber de subir em ônibus, não suporta mais ter que pechinchar e tão pouco pegar táxis. Ainda há outro fator de estresse: você não dormiu direito nas últimas quatro noites. E outro: quando está em grupo nem sempre a sua vontade prevalece e você precisa se adaptar aos costumes e ritmos dos outros companheiros. Desta forma cheguei a uma conclusão: precisava jogar tudo para o alto e descansar.

Descemos na rodoviária e fomos para o albergue que estava indicado no roteiro. Chegando lá, nem tentei pechinchar embasado no fato de que não passaríamos a noite, apenas queria saber se tinha alguma cama livre. A mulher da recepção disse que poderíamos tomar o café-da-manhã, já que não iríamos ficar até o outro dia. Que bom, pelo menos uma vantagem. Mal saberia nós que o café não estava incluso na diária (rs). A sala de café ficava no último andar. Subimos de elevador até o penúltimo, já que para lá só de escadas mesmo.

O assunto era o soroche, ou mal da altitude. Estávamos a 2.400 metros acima do nível do mar, mas até então não sentia nada diferente. Sentamos a mesa, mas não vimos comida alguma. Achamos estranho, principalmente porque éramos os únicos na sala. Depois de alguns minutos pensando que não havia café, eis que surge uma mulher perguntando o que a gente ia querer. Era uma opção de bebida, e outra de pão, mais algumas cositas. Nada muito farto. Foi quando deu saudades daqueles buffês de café-da-manhã dos hoteis brasileiros.

Foi a nossa primeira oportunidade de tomar o famoso e polêmico chá de coca. A garçonete, que também era a cozinheira, nos deu a escolha, só que ninguém quis. Estava cansado demais para pensar se queria, ou não, experimentar naquele momento.

Fim do café, finalmente hora do sono. Cochabamba? Sim, queria MUITO conhecer cada beco, mas cuidar da fadiga era prioridade. Lembro-me a resposta positiva de cada músculo quando me deitei. Era a melhor cama do mundo. Nem a claridade me tirou o ânimo de prosseguir com a minha soneca. Adormeci.

Dormir de dia não era o ideal. Acordei umas duas vezes durante o sono. Na primeira, me lembro de ver o Rodrigo fazendo anotações da viagem. Pensei: "Como ele consegue ficar acordad..... zzzzzz". Na segunda, me surpreendi com a versão em espanhol de "Os Padrinhos Mágicos", que passava na televisão.

Quando o Rodrigo me acordou já era próximo a uma da tarde. Lamentei não continuar, mas precisava tocar a jornada. Saímos eu, ele e a Lorena para almoçar, não me lembro onde. Ao passar pelas ruas, notei que Cochabamba não era tão mal como já havia ouvido falar. Era tranquila e, de certa forma, alegre. No meio da reflexão, optamos por fazer um passeio - subir até o Cristo de la Concordia.

A população de Cochabamba tem orgulho deste Cristo. Isto porque, segundo eles, é a maior estátua do Cristo de todo o mundo. Maior, inclusive, da famosa moradora do Corcovado. Só que para conhecê-la, precisávamos subir uma pequena (grande, na verdade) montanha. Podíamos pegar um táxi, subir as centenas de degraus ou (a melhor opção) ir de teleférico. Temia por este momento, já que tenho medo de altura. Porém, como já é costume desafiar este medo, acabei topando.

Não poderia ter tomado decisão melhor. Foi um passeio maravilhoso. Até a subida e descida do teleférico foi ótima. Tiramos várias fotos no alto da montanha. Lá tem uma vista maravilhosa da cidade, que é grande. Dá para ter noção também que Cochabamba fica em um ponto intermediário do lado leste dos Andes, pouco abaixo do altiplano que é cerca de 1.200 metros mais alto. A estátua do Cristo também é bonita, mas, sinceramente, eu prefiro a do Rio de Janeiro.

Voltamos a reunir o grupo já na hora de partirmos. O sono não chegou nem perto de me revigorar por completo, mas me deixou melhor. Recomeçamos o nosso martírio, arrumando as malas para a próxima etapa. Tocamos para a rodoviária, onde conseguimos passagem para Oruro em um ônibus que saía às 17h15. Era uma viagem curta, de mais ou menos quatro horas, subindo mais 1.400 metros e chegando a 3.800 acima do nível do mar. Daí sim, com certeza conheceríamos o soroche.

Oruro era uma cidade estratégica no nosso roteiro. Era de lá que saía o trem para Uyuni, no outro dia à tarde. O plano era chegar a cidade até às dez horas, arrumar um hotel e, enfim, ter uma noite descente, dormindo na cama. Esta idéia me dava forças para seguir em frente, sem reclamar muito. De qualquer forma, me despedi de Cochabamba com a certeza de não tê-la conhecido como queria.

Mapa do Caminho - Dia 5


Data: 07/06/2007
Saída: Cochabamba, Bolívia
Chegada: Oruro, Bolívia
Distância percorrida no dia: 227 km
Empresa de ônibus: Coral
Duração da viagem: +- 4h
Tarifa: bs. 15 (+- R$ 4,20)

Um comentário:

Leonardo Picinati disse...

Eduardo,
Adorando sua viagem pela Bolívia.
Quero ir no mês que vem para lá. Buscando informações sobre a viagem.
Sou do Espírito Santo, Vitória e pretendo embarcar no Trem da Morte para Santa Cruz de La Sierra.
Qualquer coisa add no msn para trocarmos idéias. picinati@hotmail.com
Abração,
Leonardo Picinati
Jornalista

powered by Blogger | WordPress by Newwpthemes | Converted by BloggerTheme