quinta-feira, junho 05, 2008

Dia confuso

Nunca um beliche de albergue foi tão confortávle quanto o que eu dormi em Corumbá (MS), depois de aproximadamente 24 horas de ônibus, praticamente seguidas. O rodízio no dia anterior não havia causado nenhum efeito colateral (graças a DEUS), mas era apenas a minha primeira experiência com pizzas naquela jornada. Mais tarde eu iria lamentar ter colocado este maravilhoso prato como uma das primeiras alternativas de comida em uma viagem que mexe tanto com o nosso estômago como esta.

A minha grande lamentação era não ter conseguido apresentar aos meus colegas o famoso 'Pintado à Urucum', prato muito famoso no Pantanal e extremamente saboroso. No nosso quarto coletivo (não havia quartos privados neste albergue), havia apenas um rapaz hospedado. Na verdade era um portuguê-californiano. Estranho não? Foi o que eu pensei quando ele começou a falar o português, e eu não conseguia me decidir se eu deixava ele continuar ou pedia para ele prosseguir em inglês.

De família portuguesa, o nosso companheiro de quarto tinha uma empresa de importação nos Estados Unidos. Ele importava iguarias portuguesas, tal como azeite, olivas e etc..., de uma empresa de sua família, em Portugal. Parecia ganhar bem. Estava em férias de seis meses pela América do Sul. O interessante foi a sua cara quando apresentamos o nosso roteiro e informamos que iríamos percorrer toda aquela distância em apenas 24 dias. "Um pouco apertado, não?", perguntou. A vontade era responder: "É porque existe uma coisa que se chama trabalho e que nós precisamos voltar a praticá-lo no início do mês que vem". Enfim, ficou na vontade.

Dei a idéia a todos de irmos até a Bolívia pela manhã. Em Puerto Quijarro há uma Zona Franca (um pequeno shopping), onde se vende muito produto interessante (importados e locais) por preço geralmente reduzido. E nós precisávamos nos preparar para as 16 horas de viagem no Trem da Morte, até a cidade boliviana de Santa Cruz de la Sierra. Com quatro de nós optando pela visita à fronteira (a Lorena preferiu ir tirar fotos no porto), partimos rumo a praça principal para tomarmos o ônibus até a alfândega.

Como demorou este ônibus! Lembrei do transporte coletivo de Goiânia, os incontáveis problemas e a falta de vontade de resolvê-los, tanto pelo poder público como pelas empresas que monopolizam o sistema. A cada minuto que passava, a minha ansiedade aumentava, já que o trem sairia às 16:30 e até lá tínhamos ainda muitas coisas para fazer. Depois de mais meia hora de espera, um ônibus anunciando "Fronteira" parou em nosso ponto e várias pessoas entraram.

A viagem foi rápida. Em no máximo 15 minutos estávamos diante da ponte que demarca oficialmente a divisão política entre Brasil e Bolívia. Era o primeiro marco na nossa viagem. Enquanto eu pensava isto, notei que um grupo de três meninas bolivianas desembarcaram junto com a gente e caminhavam rumo a Bolívia. Todas estavam muito bem trajadas, com um impecável uniforme escolar. Os livros embaixo dos braços não deixavam dúvidas - estavam vindo da escola. Detalhe: as três moravam na Bolívia e estudavam em uma escola brasileira. Cruzavam aquela fronteira todos os dias. Foi o suficiente para contem minha empolgação (rs).

A rotina das graciosas gurias pode até passar a impressão de que a fronteira é um lugar tranquilo, mas, acreditem, não é. Por ali todo o cuidado é pouco, principalmente para quem está levando quantias consideráveis em dinheiro. Contudo, também não é necessário se preparar para um campo de batalha. É só evitar dar bons argumentos para que alguém possa ver você como uma boa alternativa de vítima de saque.

Já em solo boliviano pegamos um táxi. Um carro velho, dirigido por um rapaz com feições tipicamente bolivianas. Por dentro havia bajulaques de todas as espécies, presos aonde nem se imagina. A felicidade imperava na cara do taxista. Ele nos explicou que naquele dia, nem um antes, nem um depois, naquele MESMO DIA QUE ESTÁVAMOS PASSANDO POR LÁ, o presidente da Bolívia, Evo Morales, iria visitar a região. Visivelmente era o evento do ano na cidade, já que durante todo o caminho, o motorista buzinava para moradores que estavam nas ruas e balançava uma bandeira em apoio ao presidente. Era perceptível que Morales era querido por lá, pelo menos pela maioria.

Andamos pela Zona Franca, compramos e comemos uma comida muito boa, em um restaurante por quilo. Dias depois ninguém me tiraria da cabeça que esta cozinheira era brasileira. Na volta pegamos mais um táxi boliviano, que nos levou de volta até a fronteira (eles possuem um acordo com os taxistas brasileiros - eles não trabalham no Brasil e os brasileiros não fazem corridas na Bolívia). Desta forma, cruzamos a ponte a pé e pegamos um outro táxi, já em solo brasileiro. É claro, todas estas corridas tiveram antes uma grande sessão de negociações, para fechar um preço fixo. Vale lembrar que o preço boliviano é MUITO menor do que o brasileiro.

Dentro do táxi brazuca, pudemos ver que a diferença ia muito além do preço. Além do carro ser bem novo, internamente era muito bem organizado. O motorista guiava tranquilamente o seu táxi, diferentemente da festa que fez o nosso ex-motorista boliviano. Para fechar a comparação com chave de ouro, no táxi boliviano tocava uma música típica alta, enquanto que no brasileiro um sambinha tranquilo dava o tom do ambiente. Perfeito. É exatamente este contraste que caracteriza a diferença de dois países com culturas tão distintas e evidenciados tão claramente naquela região, já que fisicamente estes dois universos estão muito próximos.

Chegamos ao albergue. Pronto. A partir daqui foi uma correria tão grande que se for contar todos os detalhes, pode apostar que vou amanhecer escrevendo. Então, vamos resumir. Na portaria, ficamos sabendo que o rapaz de quem compramos as passagens ainda não as havia deixado no albergue, conforme combinado. Tudo bem, precisávamos ir no centro, passar no banco, antes de arrumar as coisas e partir para a fronteira. Nosso medo era atrasar na imigração boliviana, onde teríamos que carimbar os passaportes.

Demorou um pouco, mas Alberto chegou com as nossas passagens em mãos. Tudo certo (graças a DEUS, novamente), exceto que ainda precisava chegar o nosso transporte de volta a fronteira, combinado na hora da compra. Enquanto isto, terminamos de arrumar as malas e partimos para o centro, rumo ao banco. Na volta, uma caminhonete velha, acoplada em uma carreta-leva-turista (aquelas que possuem bancos para que os turistas possam fazer city tour sentindo o vento no rosto), estava estacionada na porta. Quando vi, não acreditei que iriam nos levar naquilo. Aff. Mas enfim fiquei quieto. O que eu mais queria era embarcar rápido no trem e relaxar depois de toda a correria.

Subimos todos com as suas respectivas mochilas e o jeito foi aguentar a vergonha da exposição. Para piorar, quando chegamos na estrada, uma operação tapa-buracos estava atrasando o trânsito que seguia sentido fronteira. Pra quê? Nesta hora, o motorista do caminhão ('terceirizado') começou xingar tudo, falou que estava atrasado e nos ameaçou deixar no meio do caminho. Ainda bem que o Alberto estava com a gente e acalmou o homem. Para relaxar, o motorista colocou uma música velha dos anos 70 (não me lembro qual, mas era famosa). Foi o suficiente para que duas de nossas companheiras começassem a dançar, mesmo que timidamente, na carreta aberta. Pararam logo que foram saudadas pelo pessoal que fazia a obra na estrada.

Chegamos na imigração. Tudo certo? Que nada, mais problemas. Por causa da visita de Evo Morales, a imigração não abriu no período da tarde. A situação nos deixou em um dilema - ou esperávamos para ver se alguém viria nos acudir, ou então entrávamos ilegal na Bolívia. Com todo o respeito que a Bolívia merece, não me agradava esta última idéia. Contudo, estava disposto a colocá-la em prática, principalmente porque todos os bolivianos ao redor da imigração nos dizia que não teria problema algum. "Vocês carimbam quando chegarem em Santa Cruz. Expliquem que o presidente estava aqui, não vão fazer nada", falou um boliviano com quem conversei uns vinte minutos, esperando alguma ação das autoridades de fronteira.

O relógio se aproximava das quatro horas da tarde (lembrando que o nosso trem sairia às quatro e meia). Uma fila já estava formada frente a imigração, com brasileiros e outros gringos. Quando faltavam apenas cinco minutos para a hora cheia, decidimos que quatro horas seria o nosso 'deadline'. Faltando um minuto para o horário, eis que surge a notícia - iriam abrir a imigração para carimbarem nossos passaportes.

A partir daí foi uma correria. Isto porque tínhamos que preencher uma ficha longa e, em seguida, o policial batia o carimbo. Tanto nós (que íamos pegar o trem), quanto eles (que queriam ver o Evo) estávamos loucos para sair dali. Na correria eu esqueci uma sacola com a comida para a viagem, que havia comprado na Zona Franca, mas só iria notar mais tarde. Certamente serviu de lanche para as autoridades bolivianas, no dia seguinte. Combinamos com duas gringas para dividir o táxi até a estação. Desta forma, pegamos dois táxis. Quanto já estava prestes a escalar as escadas da estação (e realizar um sonho antigo de embarcar no Trem da Morte), eis que surge uma voz pedindo ajuda.

Me virei e vi a Lorena discutindo com um dos taxisistas. Não vou entrar no mérito, mas via que um não entendia o outro. Cheguei e vi que era apenas um mal entendido. Contudo, os dois não pararam com a troca de palavras acusatórias. Foi quando o motorista levantou a mão como se fosse dar um tapa na nossa amiga. Parou no ar, principalmente porque um amigo boliviano fez o 'deixa disso'.

Novamente me coloco em posição, e começo a subir as escadas. Nos últimos degraus levo um tropeção e quase caio de boca no chão. Penso: "DEUS, quem poderia imaginar que seria tão conturbado assim?". Mas ainda era pouco. Chegando na porta de embarque (uns 5 minutos para a partida), mais um problema. Tínhamos que pagar a taxa de embarque, de dois bolivinos por pessoa, mas, nesta hora, lembramos que, com a confusão, não havíamos feito câmbio. Não titubeei. Vi que o total daria dez bolivianos e passei a minha nota de estimação (que havia trocado uma outra vez que havia estado por aquelas bandas). A falta de dinheiro boliviano, porém, iria nos render uma noite sem comida no trem, o que descobríriamos apenas mais tarde. Foi nesta hora que percebi que a sacola com as minhas provisões já não estava em minhas mãos.

Mapa do Caminho - Dia 3

Data: 05/06/2007
Saída: Corumbá (MS), Brasil
Chegada: Santa Cruz de la Sierra, Bolívia - no dia sequinte
Distância percorrida no dia: 662 km
Empresa de trem: Ferroviaria Oriental
Duração da viagem: +- 16h
Tarifa: R$ 50,00

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