domingo, junho 08, 2008

No meio do deserto

Talvez fosse o cansaço, ou o costume da nossa mente de insistir em se acostumar com a situação, o certo que já confiávamos mais nos serviços bolivianos. A prova era que, desta vez, despachamos a nossa bagagem no ônibus que tomamos para Oruro.Confesso que com a mão no coração, e com toda atenção para ver se ninguém iria mexer nelas antes do tempo.

Saímos de Cochabamba sabendo que seria mais quatro horas de subida. O detalhe era que, pela primeira vez, a viagem não se estenderia pela noite. Eu estava muito feliz por isto, já visualizando a minha caminha em Oruro. O meu cochilo matinal me deu forças e pude desfrutar a viagem de ônibus, sem me emergir em um sono obrigatório.

A noite caiu logo, o filminho tradicional começou e mais uma vez não deu para ficar observando os detalhes da estrada e das cidades que passávamos. Não demorou muito para que a estrada se acentuasse, e o que era alto ficou mais. Desta vez a nossa referência era Cochabamba, já que a subida da serra ficava perto da cidade. Era subida, curva, subida, curva, subida, e lá estavam as luzes da cidade, cada vez mais embaixo e distante.

Soroche. A partir deste momento o mal da altitude passou a fazer parte de nossas preocupações, até o último dia de viagem. Vou tentar explicar como funciona, de leigo para os possíveis leigos.

Cada vez que a gente sobe o ar fica rarefeito, ou seja, com menos oxigênio. Nosso organismo é acostumado com o nível de oxigênio do ar que respiramos na cidade em que moramos. Goiânia é aproximadamente 750 metros acima do nível do mar. Percebe-se que muito mais baixo que Oruro (cerca de 3.800 metros). Assim, quando saímos de uma região baixa, as nossas células estão carregadas de oxigênio, mas quando chegamos em um lugar alto a reposição não é efetiva. Pelo menos até que seu corpo acostume com a nova situação. Ou seja, dentro de alguns dias você vai começar a sentir os sintomas do soroche.

É claro que cada corpo reage de uma forma. Esta é uma regra geral. Tanto que os times de futebol, quando vão jogar na altitude, permanecem em uma cidade baixa até momentos antes da partida, para não sentir efeitos que possam debilitar os jogadores. Mas é claro que desde o primeiro minuto em uma região alta, qualquer pessoa já começa sentir as diferenças, mesmo que estas, a priori, não tenha interferência imediata na condição física.

Quando você ultrapassa os três mil metros, é inevitável sentir um maior cansaço resultante de qualquer esforço físico. Naquela noite descobrimos como era isto. O ônibus continuava subindo, e eu estava sentado com a cabeça escorada normalmente no encosto, na posição normal. Estava quase cochilando, quando senti que o ar não veio como deveria. A sensação não foi ruim, muito menos desesperadora (como muitos podem até pensar), mas diferente e com um pequeno desconforto. É claro que acordei do pseudo-sono e percebi que já estava mais alto do que o normal aceito pelo meu corpo.

Tive esta sensação duas vezes. Nas duas estava tentando dormir. Não tive mais durante toda a jornada. Acredito que foi apenas uma experiência de quem acabava de apresentar ao seu corpo uma situação diferente, de pouco oxigênio. Vale lembrar que, em estado de repouso, não há a mínima dificuldade de respiração. É a mesma coisa que estar respirando em casa. Reforço que não sou médico, e este é um relato de experiência prática. Quem quiser saber mais sobre o assunto, sugiro conversar com algum profissional de saúde, ou ler algum livro dedicado ao mal da altitude.

Durante a viagem até Oruro, passamos dos quatro mil metros. A última vez que vi Cochabamba, me lembro bem, a cidade parecia estar em câmera lenta, como na primeira experiência em subir a Cordilheira dos Andes. Era sinal de que estávamos muito alto em relação à cidade. A partir daí a estrada ficou mais plana, e rumamos para Oruro, de uma vez por todas. Me lembro quando o ônibus mudou de rumo em um trevo, já que, para Oruro, é necessário sair da estrada principal, que vai até La Paz, e pegar uma secundária. Faltava menos de uma hora para desembarcarmos.

Oruro apareceu logo, iluminada. Apesar de ser uma das principais cidades da Bolívia, é muito pobre. Isto foi instantaneamente perceptível, ao ver suas casas e ruas. A partir de Oruro, para o sul, a região é marcada pela forte atividade mineradora. Na cidade é comum dar de cara com várias casas de jóias e minérios. A partir de Oruro, se estende o caminho para Sucre e Potosí, as capitais bolivianas da mineração.

Saímos da rodoviária, já eram mais de dez horas da noite. Com a altitude veio também o frio intenso durante a noite. Rapidamente, procuramos um táxi com o nome do nosso próximo albergue nas mãos. Perguntamos ao primeiro que apareceu, se sabia onde era. Coçou a cabeça e se mostrou confuso. Tive que desmontar parte da minha mochila e pegar o roteiro, que continha o endereço completo. Quando viu o nome da ‘calle’, ele não titubeou. “Ah, esta rua é aquela”, apontou. Olhamos surpresos e vimos a entrada do nosso albergue bem ali, na nossa frente.

Que sorte, economizamos no táxi e no tempo, já que todos estávamos muito interessados em dormir. Adianto que este foi o melhor albergue de toda a viagem, sem dúvida. O curioso é que foi em uma das cidades mais pobres e feias que passamos. Pelo albergue, lamento que ficamos lá apenas uma noite.

O diferencial já era percebido desde a entrada. Todos os atendentes eram muito simpáticos e fizeram de tudo para serem agradáveis. O ambiente do hotel era muito bom. O saguão era todo decorado no tom madeira, e muito aconchegante. Nos quartos predominava o branco. Eram muito limpos e bem conservados. Perguntamos se havia algum lugar para comer, e eles se prontificaram a preparar um lanche e levar no nosso quarto. Um espetáculo.

Foi um momento de sonhos. Após dias, iríamos passar a noite dormindo na cama. O lanche chegou e era de primeiríssima qualidade. Sanduíche com leite quentinho. Muito gostoso. Inesquecível. Enfim, um pouco de conforto.

Sabe o que mais dava mais raiva nesta viagem? Ter que acordar todos os dias bem cedo. Além disto, a manhã de sexta, 8, estava bem gelada em Oruro. Às sete horas da matina já estava bem acordado, mas não conseguia deixar as cobertas. Era a hora de tomar coragem e agir por impulso.

Tínhamos que chegar bem cedo na estação de trem para comprar as passagens para Uyuni. Finalmente estávamos muito perto de chegar ao destino principal da primeira parte da jornada. Tomamos café (dispensei novamente o chá de coca), e pé na estrada, digo na rua. Nos informamos no saguão e descobrimos que a estação não ficava muito longe. Caminhar era o ideal para conhecer a cidade.

No caminho, chegamos em uma rua pitoresca. Ela era meio deserta, com muros beges nas duas margens e com poucas lojas. Era comprida, e tínhamos que ir até o final. No meio do caminho, duas vans (meio de transporte muito comum na Bolívia), se chocaram bem ao nosso testemunho. Uma descia em uma rua concorrente e acertou uma que passava um pouco atrás de nós. Paramos e ficamos esperando o ‘combate’. Os motoristas saíram do carro e, pela nossa total surpresa, se cumprimentaram e começaram conversar civilizadamente, como melhores amigos. É.

Não demoramos muito para chegar à estação, mesmo que a distância não fosse tão pequena como imaginava. No caminho, vi que meu pique já era inadequado à situação. Acostumado a andar rápido, tive que me conter várias vezes, com risco de ter que parar no meio para respirar. Era a altitude atormentando.

Os guichês de venda ainda não estavam abertos, mas muitas pessoas já faziam fila para comprar passagens. Assim como em vários estabelecimentos no Brasil, na estação de Oruro você pode pegar uma senha e esperar a sua vez sentado. Demorou quase uma hora até que começassem a emitir as passagens e que fossemos chamados. Compramos o bilhete para as três e meia da tarde, na classe intermediária.

Depois disto não tínhamos mais nenhum ‘compromisso’. Sobraram algumas horas para podermos explorar a cidade. O frio já se dissipava à medida que o sol ia tomando a posição central no céu. Prevenido, pensei em reduzir o sofrimento do dia seguinte e fui comprar um par de luvas. Chegando na loja, lembrei que não sabia dizer ‘luvas’ em español. O problema que já estava no meio da conversa com o vendedor. Em outras ocasiões, eu morreria de vergonha. Contudo, já há alguns dias tendo que conviver com aquela língua, não relutei. “Yo necessito ‘luvas’”, disse fazendo gestos. O rapaz olhou, pensou um pouco e disse: “Ah, sí, guantes!”. Nunca mais esqueci.

Fomos para o centro atrás de dinheiro. Ou melhor, ‘cambiar’ dinheiro. O problema foi que não achamos lojas de cambio tão facilmente como em Santa Cruz. Particularmente já estava cansado de andar. Naquela hora, já aproximávamos do meio-dia, o sol era escaldante, e a altitude atrapalhava. Subimos por uma rua movimentada, passamos ao lado de uma praça, onde alguém nos indicou um banco. Entramos e vimos que estava saindo gente pela janela. Meu humor já estava no fim e, diferente dos outros, preferi continuar procurando.

Saí sozinho e comecei passear pela cidade. Era uma situação nova, efetivamente a primeira vez que estava sozinho, já que fazíamos tudo em grupo. No início, me senti um pouco vulnerável, mas logo me acostumei.

Comecei a mirar as lojas para ver quem poderia fazer cambio. Passei pela rua de cima da praça e desci uma paralela. Logo encontrei uma loja da Western Union. Como eu sabia que ali se faz transações monetárias internacionais, experimentei. “Bom dia, vocês fazem cambio”, perguntei a uma moça que estava atrás do balcão. “Quanto?”, perguntou. “Uns X dólares (não me lembro, mas não era muito)”, respondi. Ela pensou um pouco, abriu o caixa, checou o dinheiro e disse: “Ah, tudo bem”. Não acreditava. Sem filas. Que maravilha.

Voltei ao albergue. Como não estava com o restante do grupo e já era tarde, decidi ir almoçar sozinho. Perguntei no saguão onde havia um restaurante. Eles me indicaram um logo na esquina. Cheguei, entrei e vi que só havia uma pessoa comendo. Fiquei me questionando se era uma boa idéia. Acabei indo com a cara do local e sentei.

O garçom, muito sorridente, logo me entregou o cardápio, mas demorei a me decidir. Em todos os pratos parecia que vinha muita comida, e minha fome não era tanta assim. Acabei me decidindo por um prato chamado ‘Lomo Saltado’, feito com pedacinhos de carne de porco, vegetais cortados e batatas fritas, tudo junto. E não é que já estava imaginando? Chegou um prato gigantesco de comida, por apenas Bs. 18 (R$ 5). Estava gostoso, bem que tentei, mas não consegui comer tudo. Saí de lá suspeitando que o garçom havia achado que não gostei da comida.

Com tudo pronto, pegamos um táxi e voltamos à estação. Preferimos não despachar nossas mochilas (de ônibus é uma coisa, a gente vê onde eles colocam, agora trem não dá segurança). Tomamos os nossos postos e pronto, era só o maquinista tocar. Soltaram os freio, e o trem começou a andar devagarzinho. Pensei que, em poucos minutos, eles acelerariam, mas não foi o que aconteceu. O trem já estava na sua velocidade final.

Foi uma experiência inesquecível - viajar a 50 km/h. Ele balançava de um lado para outro, fazia uns 30 barulhos diferente, mas não aumentava a velocidade. Tanto que para percorrer uma distância de pouco mais de 300 km, demoramos sete horas. O pior é que, com o passar das horas, as minhas costas começou a doer. O banco não era ruim, mas também não era confortável. O calor era grande. É preciso dizer que foram horas desagradáveis?

Logo deixamos Oruro para trás. Assim que saímos, testemunhamos algo interessante. Aos poucos, junto aos trilhos, começou a se formar um pequeno lago, que foi aumentando com o passar do tempo. Logo dominou tudo e a impressão que tivemos era de estar andando de trem no meio de um rio. A água refletia o céu inteiramente azul. O fenômeno era muito bonito.

Porém, logo acabou a água e o que ficou foi muita poeira, de uma paisagem cada vez mais desértica. Esta região é muito árida, só faltando os camelos e a areia para se tornar o emblemático deserto contido no imaginário de todo o brasileiro. Ali também era muito plano. Olha, que estou falando de mais plano que Goiânia, Brasília e o Planalto Central brasileiro. Interessante como uma região tão alta e montanhosa pode ter o horizonte tão nivelado.

Nem mesmo a oportunidade de viajar de dia e acompanhar as paisagens bolivianas me animou. O cenário era um tédio. O trem ia muito devagar. Mais uma vez tive que agüentar um filme chato na cabeça. A primeira cidade era Uyuni, ou seja, não havia nada de diferente para ver. Em quarenta minutos já havia decorado cada detalhe da região. Em três horas queria me ver livre dali. Só que tive que esperar mais quatro, com minhas costas ardendo e o tédio me matando, para, finalmente, aportar em Uyuni.

Mapa do Caminho - Dia 6

Data: 08/06/2007
Saída: Oruro, Bolívia
Chegada: Uyuni, Bolívia
Distância percorrida no dia: 353 km
Empresa de trem: FCA
Duração da viagem: +- 7h
Tarifa: Bs. 52 (+- R$ 14,65 à época)

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